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A vida após o crack - Zero Hora

Zero Hora acompanha o dia em que Rodrigo de Souza Barros, 34 anos, recebe alta da Fazenda do Senhor Jesus, no interior de Viamão, depois de nove meses de tratamento para a dependência de crack.
02/05/2010 Atualizada em 21/07/2023 11:02:19
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Zero Hora acompanha o dia em que Rodrigo de Souza Barros, 34 anos, recebe alta da Fazenda do Senhor Jesus, no interior de Viamão, depois de nove meses de tratamento para a dependência de crack.





As despedidas foram na véspera, com abraços e cantoria. Agora ninguém se detém nos acenos e desejos de um futuro bom. Tudo e mais um pouco já foi dito em nove meses de tratamento. O interno que puxa a oração do grupo no café da manhã, citando a Bíblia, menciona um “período de tranquilidade”. Parece um presságio otimista.





– Volta aí pra fazer um churrasco pra nós, né? – grita um.



– Só aparece se for com quatro quilos de costela – emenda outro.



– Quero te ver bom lá na rua!





Às 7h40min da última quinta-feira, grossa de cerração, Rodrigo de Souza Barros, 34 anos, dependente químico desde os 15 e limpo há 11 meses, deixa a Fazenda do Senhor Jesus, administrada pela Pastoral de Auxílio ao Toxicômano (Pacto – POA), na Lomba Verde, interior de Viamão. Enquanto os colegas tomam o caminho da lida com porcos e vacas, da horta, dos panelões na cozinha, o ex-garçom busca o portão. Chegou o dia de voltar para casa.





– Álcool aos 15, maconha aos 16, cocaína aos 17, pedra aos 25. Eu prometi: não vou mais levar sofrimento para a minha família.





O quase nada que sobrou da vida atormentada pelo crack e o pouco que juntou no último ano cabem em uma mochila e em duas pequenas malas de mão. A melhor roupa, ele veste – além da camiseta presenteada pela mãe, com a inscrição “Sou feliz de cara” (sem drogas), um casaco emprestado do melhor amigo de internato, para se aprumar para as fotos. O restante do simplório guarda-roupa estufa as sacolas junto de uma Bíblia, tocos de sabão, um terço, uma cuia, cartas, uma colorida pena de arara como lembrança da vida no campo.





– Sinto uma felicidade enorme por estar concluindo alguma coisa na minha vida – diz Rodrigo, que não foi além da 7ª série nem permaneceu por mais de seis meses em qualquer emprego.





O homem velho, o homem novo



Deixar a fazenda a pé e sem companhia faz parte da terapia – é preciso reaprender a andar sozinho. Rodrigo percorre um quilômetro de uma judiada estrada de chão cantarolando baixinho. A trilha sonora do mais sóbrio de seus dias de adulto fala em celebrar a vitória. Seu discurso é pontuado por menções a Deus e a Jesus Cristo, além de salmos, trechos de livros de autoajuda e os 12 passos que norteiam a recuperação dos alcoólicos anônimos, aplicados também na comunidade terapêutica que acaba de deixar. Sabe tudo de cor. Não era apegado a religião antes de chegar ali, depois transmutou-se em um fiel ardoroso. Precisava se agarrar a alguma coisa.



– São Paulo disse: “Quanto menor eu me fizer, maior eu sou”. Vou manter meus dois pés atrás, sempre desconfiando de mim. Um dependente químico não pode ser autoconfiante.





Rodrigo fala de si mesmo como se fossem dois: “o meu homem velho” e “o meu homem novo”. No período que separa um do outro, calcula ter visto entre 45 e 50 pessoas abandonando o tratamento. Pensou em desistir uma vez – atrasado no retorno da segunda visita de sete dias que fez à família, em Porto Alegre, foi punido. A terceira saída, no mês seguinte, estava automaticamente cancelada. Passou a tarde remoendo a raiva, mas o anoitecer lhe devolveu a calma.



– Meu homem novo me convenceu a ficar – garante.





Orações afastam maus pensamentos



Pouco perturba a calmaria da hora e meia de espera pelo ônibus. De vez em quando um caminhão levantando poeira, uma carroça, um cusco gritão. É com R$ 15 no bolso que Rodrigo recomeça. Não precisaria nem da metade, não quer mais saber de gastança – R$ 3,45 para a passagem, mais um pila de balas que vai pegar em um boteco depois de desembarcar.





Outra hora e meia sacolejando, mas o desconforto da viagem não atrapalha os pensamentos. Garante que não sente medo ou vontade de fumar crack. Arrisca uma estimativa: três vezes por semana, o prazer que sentia com o primeiro pega em uma pedra, o “pancadão”, lhe atravessa as ideias. Corre a rezar, conversar com alguém, cantar um hino de louvor.



– Minha lata de lixo é horrível. Mas eu quero continuar carregando ela no pescoço para ficar sentindo o cheiro.



Culpa pela relação desfeita



O pensamento mais insistente é outro. Culpa-se pelo casamento desfeito. O vício arruinou o relacionamento de 10 anos e a casa inteira. Rodrigo sabe quanto pagou por cada objeto na loja e quanto recebeu ao revendê-los por trocados ou empenhá-los na boca de fumo. A ex-mulher ensaiou o fim mais de uma vez, mas sempre acabava voltando depois de uns dias fora e de repetidas promessas de recuperação.





Do dia em que empacotou tudo definitivamente, o marido só lembra de entrar no banheiro de manhã cedo e de sair, à tarde, 30 pedras depois, quando ela já não estava mais lá. Não recorda direito quando foi, talvez em fevereiro do ano passado.

 

Anda ruim de memória, se perde nas conversas. Ainda suspira:



– Sou apaixonado de doer, mas tento mandar o pensamento adiante.





A campainha toca, começa a correria



Às 11h30min, está na Avenida João Pessoa, na Capital. Cumprirá o restante do trajeto a pé. Enquanto Rodrigo enumera o que o faria mais feliz nesse dia – um abraço apertado na sobrinha e afilhada, Maria Eduarda, três anos, refrigerante e brigadeirão –, a pensionista Guacira Jussara de Souza Barros, 56 anos, está em casa, às voltas com um leitão no forno, conquistado em um sorteio e distribuído em três formas de alumínio.





O filho precisa apertar três vezes a campainha da casa na Rua Alcides Cruz, bairro Santa Cecília. Desconfiado da demora, ele não sabe que lá dentro tem início um pequeno furdunço. Jussara se apressa a lavar as mãos sujas do tempero da carne. Tatiana, a irmã, 27 anos, repete aos gritos que o mano chegou, assustando a filha, que ensaia um resmungo pela algaravia incompreensível. Gabriel, o irmão, 24 anos, roendo as unhas, se adianta e depois recua:



– Tu abre a porta, mãe.





Leitão no forno, refri e brigadeirão



Jussara aparece vestindo uma camiseta igual à do filho. Precisa abrir o cadeado e tirar a corrente do portão, e talvez nessa hora tenha se lembrado do passado ingrato que a obrigou a acorrentar o filho maltrapilho três vezes e a ter vontade de matá-lo. Abre os braços para as boas-vindas e já está chorando antes de acomodar-se no ombro dele. A primeira pergunta não poderia ser mais trivial, mas parece também a única possível:



– Como é que tu está, meu filho?





Seguem-se outras tantas: já está com saudade da fazenda? Não sente calor com esse casacão? O coração está batendo mais forte? Como foi a despedida? Em minutos, parece que a casa não conheceu outra coisa senão paz. Rodrigo se integra imediatamente à rotina, dá carne picadinha à sobrinha, verifica se o leitão já está no ponto. Fazem um brinde com café enquanto o almoço não está pronto. Surpresa: tem refri e o doce de chocolate tão esperado.





O paciente agora será monitor



Os nove meses de internação carregam um simbolismo evidente: após a gestação, o dependente renasce. Jussara quer reaprender a confiar no filho, acredita que ele está curado. Rodrigo começa um estágio na sede da Pacto, no centro de Porto Alegre, na terça-feira. Está passando para o outro lado, será auxiliar de monitor, cobrará dos outros a disciplina que teve de manter. Quer completar o Ensino Médio, talvez fazer um curso técnico de enfermagem. É preciso continuar comparecendo a reuniões, tomando remédios, indo à missa.





Alguém toca a campainha. Ele interrompe o chimarrão e levanta do sofá para atender. Maria Eduarda, que já temeu o padrinho em outros tempos e agora exige atenção constante, se sobressalta:



– Tu vai embora, dindo?



Rodrigo segura o passo ligeiro e se volta à menina que brinca no chão:



– Eu nunca mais vou desgrudar de ti.


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