Não à proibição
Sérgio da Costa Franco, historiador e procurador de Justiça aposentado
É certo que Caim não aguardou a invenção das armas de fogo para matar seu irmão Abel. E também não consta que, em 1572, no dia de São Bartolomeu, os católicos franceses que assassinaram alguns milhares de protestantes tenham feito uso de pistolas Luger ou de revólveres Colt. O ânimo de matar os semelhantes antecipou-se de séculos à invenção do arcabuz, da espingarda ou de fuzil automático.
A propósito do próximo plebiscito em que o eleitorado deverá opinar sobre o comércio de armas de fogo e munições, fui revisar meu arquivo e procurar notas relativas às dezenas de sessões do júri em que acusei homicidas dolosos. E apesar de incompletos os dados, cheguei à conclusão de que metade dos réus não utilizaram revólveres ou pistolas em suas ações agressivas, e sim facas, facões, foices, machados e até pedras. O episódio mais chocante que relembro foi o da Tia Pequena, velhinha assassinada no interior de Soledade: os sicários derrubaram a vítima sobre uma rocha e lhe esmagaram a cabeça a golpes de pedra. Outro homicídio cruel com que deparei foi o de um rapaz que assassinou o pai, enquanto este tomava na cozinha seu chimarrão matinal: um machado foi o instrumento desse parricídio. Lembro-me até de uma tentativa de homicídio, autor o marido e vítima a mulher, em que o instrumento da agressão foi um vulgar tijolo... Na zona rural, parece-me, o facão Três Listras, a adaga gaúcha e a peixeira nordestina fazem mais dano que os revólveres Taurus...
Pela própria experiência de promotor de justiça, não posso admitir a suposta eficácia dessa lei do desarmamento, com endereço específico às armas de fogo, quando é certo que os meios de ação letal são os mais variados, e alguns deles muito mais temíveis. O próprio legislador penal cominou pena mais grave para o homicídio quando haja emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, em clara demonstração de atribuir dolo mais intenso aos agentes que optam por tais meios insidiosos ou cruéis.
Só vejo entusiasmo pela proibição de armas de fogo entre poetas e ficcionistas que nunca operaram profissionalmente na repressão à criminalidade. E, evidentemente, entre pessoas de inclinação subversiva, solidárias com expropriações e invasões de propriedades. Para esse efeito, nada melhor que desarmar previamente os fazendeiros e seus auxiliares, privando-os da possibilidade de resistência. Como o MST ataca de foices e facões, a romântica lei do desarmamento não afeta em nada a violência de suas ações expropriatórias. E, ao revés, enfraquece as vítimas dos Setembros Vermelhos e outras operações daquela milícia agrária disfarçada em movimento social.
O povo está sendo chamado a opinar não ou sim ao comércio de armas e munições. É um momento importante para o exercício da democracia direta. E sinceramente espero que a cidadania não desperdice a oportunidade de reafirmar um velho direito seu à legítima defesa da vida e dos bens. Nos instantes de perigo (e presentemente o perigo é uma constante), todo cidadão é soldado.
Não chegamos a assumir o ânimo libertário dos fundadores da democracia americana, que inseriram em sua declaração de direitos, em 1789, o princípio genérico de que "não será violado o direito do povo de manter e portar armas". A modernidade restringiu e limitou muitas liberdades básicas, inclusive a do porte de armas. Mas não é isso que está em discussão. O que apenas se pretende é que os meios de defesa pessoal não sejam privilégio dos malfeitores. E que o comércio lícito possa atender às necessidades do cidadão honesto.
Publicado na edição de 9 de outubro do Jornal Zero Hora