Meninos do Crack - Voltar no tempo (Portal Social )
Os textos fazem parte do livro Meninos do Crack, escrito pela jornalista Ana Paula Nonnenmacher, lançado em 2009.
O primeiro depoimento é de D.I., que tem dezenove anos e é garçom. Freqüentou a escola até a 4ª série do ensino fundamental. Fuma crack há sete anos e passou por doze internações de reabilitação.
Voltar no tempo
Se eu pudesse voltar no tempo, eu não teria feito o bagulho do jeito que eu fiz. Há quase dez anos que estou nas drogas, na correria pelo vício. Ninguém me ofereceu não. Eu já conhecia pessoas do meio das drogas e deu. Foi o suficiente para eu entrar nesse mundinho negro.
Eu fazia a correria para os caras, ia buscar o bagulho para eles. Pedi, não quiseram me dar. Então eu peguei. Um dia, fui pegar a droga para eles e quebrei um pedacinho da pedra, antes de entregar para os manos. A partir desse dia, foi... Pegou no cachimbo, esquece, já era, reza para sair. Tá achando o quê? Eu tentei várias vezes, mas fracassei.
Crack se fuma no cachimbo ou na lata, mas na lata não fumo não, porque oxida, altera a pedra. Aí fumo mesmo no cachimbo. O cheiro do bagulho é forte.
Eu não me arrependo de nada que eu fiz, porque não adianta chorar pelo leite derramado, mas como eu queria começar do zero. Agora, do jeito que eu estou, acredito que, se eu ficar três meses sem fumar uma pedra de crack, eu morro. Porque já faz muito tempo que eu uso.
Não acredito em clinicas, considero uma lavagem cerebral. Quem quer parar, pára, apesar de ser 80% mais forte que o cigarro. Quem realmente quer largar essa coisa, larga, mas tem que querer. Clínicas, remédios e internações não são a cura. A cura tá na vontade do camarada.
Na vida, as pessoas têm dois caminhos para seguir: o certo e o errado. Na trilha do certo, tu pode fazer tudo o que quiser: beber, fumar um baseado... Só não pode passar disso, se não tu perde tudo o que tem. Na trajetória do errado, e aí que chega o crack, as pessoas não têm noção do que ele é. Eu também não tinha. Se pensa que é só uma curtição, que se fica maluco. Usa uma vez por mês, uma vez por semana e, quando vê, tá fumando todos os dias. Fico pensando nos motivos que a gente inventa, no começo, para poder fumar. Se brigar em casa: fuma, se tá estressado: fuma. O cara põe a culpa no que acontece na vida dele para poder fumar e não enxerga que já é um viciado.
O tempo não vai voltar. Estou falando tudo isso porque não quero que as pessoas entrem nessa armadilha. Eu digo mais: nunca entre, porque você não tem idéia do quanto é difícil largar. Tô falando isso, porque não quero ver os filhos dos meus amigos nessa merda chamada crack. Fico pensando: como é fácil o acesso às drogas. Eu saio daqui agora, pego um táxi e compro. Ou faço um telefonema e a droga vem até mim. O crack está em todo canto: esquinas, vielas, mansões... Vários loucos que as pessoas nem imaginam são os patrões do crack, os donos dessa cidade.
Eu tenho sonhos: quero casar, ter filhos... Ou você estava pensando que drogado não sonha? Sonha sim, mas às vezes não dá tempo de realizar.
Faz vinte minutos que fumei pela última vez. As pessoas dizem que o crack é uma droga barata? Barata? Vai você atrás de cinco reais de cinco em cinco minutos para ver se é tão barato assim. Não há grana que chegue.
Hoje a minha avó vai vir aqui me dar minha grana. Minha pensão fica com ela, porque é ela que controla. Vou no apartamento pegar minha mina, pagar umas contas de tráfico e comida por aí e o resto vou fumar. Para consumir a droga eu não roubo não. Ganho na elegância. Por isso, não tenho medo de ir em cana, nem de morrer. Tem o dinheiro, pega o cachimbo na mão, coloca cinza em cima, depois a pedra e acende. A fumaça faz o resto.
Quero contar tudo isso porque não quero que as pessoas despertem a curiosidade para essa maldição chamada crack. Eu rezo todas as noites e peço perdão a Deus, por usar mais um dia essas pedras. Eu não deixaria que alguém que nunca usou experimentasse, porque não quero que ninguém se destrua pelas minhas mãos.
“O demônio rouba a minha alma. O inferno me seqüestra. Cadê a luz? Cadê Jesus para julgar mais este réu?” é a letra de um rap, escrito de vermelho na parede da minha sala. Quem escreveu? Não sei, um mano aí...
Para mais informações sobre o livro, acesse o site www.meninosdocrack.com.br