Lenio Streck analisa o MP após 24 anos da Constituição de 1988
Membro do Ministério Público gaúcho desde 1986, o procurador-de Justiça Lenio Luiz Streck é um pensador do Direito, da Constituição e dos temas afeitos à Instituição. Membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ele será um dos palestrantes do XI Congresso Estadual do Ministério Público, em agosto, na Serra. Nesta semana, ele conversou com a AMP/RS sobre diversos assuntos ligados ao MP e seus membros. Confira algumas impressões de Streck.
AMP/RS - Quase 25 anos depois da Constituição de 1988, o saldo do MP, no aspecto institucional, ou seja, nas missões que se propôs a cumprir, é positivo ou negativo?
Lenio Streck - Indubitavelmente, o saldo é positivo. O MP cresceu, tem um perfil institucional. Se nos compararmos com o que éramos antes de 1988, veremos que conquistamos prerrogativas e garantias que não tínhamos. Claro que nós temos uma série de problemas, e esses problemas também não dependem especificamente apenas do MP. Então, vejam como, passados 24 anos, nós ainda não resolvemos o problema da investigação criminal. Vejam como é difícil institucionalizar formas de combate ao crime, especialmente quando o principal combate ao crime, que diz respeito ao poder investigatório, exatamente corresponde ao andar de cima da sociedade. Esse é o grande problema. O MP está pagando, de certo modo, pelos seus acertos. Se o MP não investisse, depois da Constituição, contra os setores das camadas média e superiores, ele não teria nenhuma contestação no plano do poder investigatório. Não creio que as pessoas que são contra o poder investigatório do MP, tanto na doutrina quanto na política, estejam tão preocupadas assim com o combate aos crimes de menor potencial ou aos crimes que dizem respeito às relações inter-individuais da sociedade, como furto e roubo. A grande questão está no andar de cima.
AMP/RS - Nesse contexto, de saldo positivo, como combater iniciativas políticas repetidas de restringir ou limitar a atuação do MP e as prerrogativas de seus membros, como é o caso da PEC 37?
Lenio - Acho que o MP tem que se comunicar melhor com a sociedade e com os próprios meios de comunicação. Propostas como esta, de restringir o poder investigatório, já deveriam ser detonadas, liquidadas pela própria opinião pública. O MP tinha que jogar a última pá de cal em projetos desse tipo e não ser o primeiro a cavar contra. Há uma falta de comunicação e uma falta de um constrangimento epistemológico a ser feito pela doutrina do Direito. O MP teria que ter mais doutrinadores nesse sentido para se defender e para atacar esse tipo de iniciativa. Penso que o Judiciário deveria já de há muito partir em defesa do MP nesse sentido. As instituições deveriam ter partido em defesa para mostrar que iniciativas como essa são iniciativas nefastas não contra o MP, mas contra a sociedade. E não é nenhum instrumento de retórica, simplesmente de jogar conversa fora. Efetivamente, propostas como esta são nefastas com a democracia. Agora, penso, também, que temos de tensionar o Judiciário nessas grandes questões. Assim como, se, por acaso, uma emenda constitucional dessa passa, penso que deve ser imediatamente questionada no Judiciário. Mas questionada com veemência, como nós devíamos ter questionado, no nosso cotidiano.
AMP/RS - Quais as reformas internas necessárias para o amadurecimento da instituição MP, bem como para nos tornarmos mais eficazes em nossa missão constitucional?
Lenio - O amadurecimento vem por um processo de aprendizagem, de educação. Quero dizer, se o Brasil, desde 1891, tem no controle difuso de constitucionalidade sua primeira forma de controle, e hoje o controle é misto, todo promotor é uma espécie de procurador-geral da República na sua comarca. Todo promotor é o fiscal da legislação. E isso significa que a lei só é lei se ela for constitucional, senão o promotor tem que ser o primeiro a levantar-se. O que o judiciário faria de 300 promotores de Justiça entrassem com uma argüição de inconstitucionalidade no controle difuso? E que isso no segundo grau também fosse feito. O que o judiciário faria com isto? Isto não provocaria tensões? A política diria: “Espera um pouco, alguma coisa está errada. Se o MP, fiscal da lei, quase uníssonamente está dizendo que isso é inconstitucional, é porque algo há.” Isso provocaria mudanças na legislação. Essa questão da sonegação de tributos é algo bizarro. É uma bizarrice que nós não conseguimos enfrentar. Não se pode tratar o furto de um modo e a sonegação de outro.
AMP/RS - Há um sentimento na classe de um aparente distanciamento da atuação ministerial do 1º e do 2º grau. Concorda? O que isso prejudica a atuação do MP como um todo e como fazer medidas efetivas pra reaproximar o 1º e 2º grau de atuação?
Lenio - Há um pouco, sim. Assim como acho que combater a criminalidade é uma espécie de política pública que o MP tem de fazer, a instituição tem de saber que tipo de crime vai combater. Não pode combater todos. Ninguém combate tudo. É impossível uma sociedade virtuosa. Existem vícios e virtudes, aliás, o nosso emprego, no Ministério Público e no Judiciário, sobrevive dos vícios da sociedade. Não há uma sociedade completamente sem crime. Temos de ver quais crimes vamos combater. Isso são políticas públicas de combate à criminalidade. O PGJ e o PGR são os que devem fomentar essas políticas públicas. A relação do MP de 2º grau com o MP de 1º grau também faz parte de políticas públicas do MP. Não é questão que se resolve no varejo, com a minha atuação individual como procurador de Justiça, na minha relação com os promotores. Isto é uma questão de atacado. Exige uma visão mais abrangente daquilo que estamos querendo, e não, simplesmente, com altruísmos e ações voluntaristas. Não se resolve nada com quatro ou cinco xerifes do MP se não temos esquema tático. Políticas públicas são aquilo que se pode chamar de esquema tático institucional, de fortalecimento institucional. A democracia não sobrevive sem as instituições. Quanto mais forte a instituição, mais facilmente conseguimos enfrentar, por exemplo tentativas de assambarcamento das nossas prerrogativas. Quanto mais forte estamos institucionalmente, muitos não teriam nem coragem de fazer projetos. Hoje eles têm, porque não acreditam tanto na nossa força e querem nos derrubar.
AMP/RS - Qual a importância e o peso de um Congresso Estadual que se propõe a reunir membros da Instituição e que linha deve seguir sua abordagem durante o evento?
Lenio - Minha perspectiva de Ministério Público é nessa linha que referi. Temos de criar um imaginário de MP, uma institucionalização de nossas atuações com uma visão fundamental daquilo que é o Alfa e o Ômega do Direito, que é a Constituição. Tudo isso que tenho feito é a partir da Constituição. O Direito no pós-guerra assume um novo paradigma. E a partir dele, instituições como o MP crescem, mas precisam da construção de um imaginário. Congressos como esse têm essa função, de construir condições e espaços de discussão. O congresso, às vezes, funciona muito mais pelo que ele produz em cada um. Se a gente consegue produzir nos membros do MP um sentimento daquilo que falta no nosso agir cotidiano, sabemos que na falta é que vamos correr atrás. A linguagem surge na falta, e nossas ações são baseadas na nossa linguagem. Nesse sentido, esses espaços institucionais, como o congresso, são fundamentais para a construção desses dois âmbitos: o mais objetivo, de especificidade, de fala, de ações, e o ambiente da reflexão. É aquilo que fica, que o sujeito vai levar para a sua comarca, para sua promotoria, para sua Procuradoria. É uma espécie de diferença entre conhecimento e saber. As questões mais objetivas, às vezes, são meramente o conhecimento. Essas passam, e a gente esquece. O espaço da reflexão é o espaço do saber. Quanto mais, num congresso como esse, nos dedicarmos à reflexão, mais temos possibilidade de avançar.
Ouça a entrevista na íntegra com o Procurador de Justiça Lenio Streck.