Como assim "prisão é só para quem precisa"?
Procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito
Por Lenio Luiz Streck
Procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito
Contextualizando...
Aqui, ab initio, vai uma explicação, antes que eu seja acusado de reacionário, adepto da lei e ordem e outros epítetos. Ou que eu esteja sendo a favor ou contra os réus do mensalão (a metade acha que sou a favor, a metade acha que sou contra...!) etc. Há muitos anos tenho deixado clara minha posição contra o solipsismo na aplicação das leis. Tenho mostrado, ad nauseam, que sentença não vem de sentire, que juiz não tem livre convencimento e que provas têm de ser judicializadas etc. Juiz (e ministro do STF) deve decidir sempre por princípios e não por políticas (ou demandas sociais).
Quem quiser examinar as Colunas aqui da ConJur, verá que alertei para o problema que iria ocorrer quanto à questão das provas (O Supremo, o contramajoritarismo e o “Pomo de ouro”); fiz críticas ao uso indiscriminado da Teoria do Domínio do Fato (O mensalão e o "domínio do fato — tipo ponderação"); critiquei a questão da presunção contra os réus (Aqui se faz, aqui se paga ou “o que atesta Malatesta”); defendi o ministro Lewandowski das injustas críticas que Merval Pereira lhe fez; em entrevistas (brevemente, escreverei sobre isso aqui), venho chamando a atenção para a necessidade do respeito à tradição construída pelo direito processual no que toca às fórmulas de aplicação das penas (o STF não pode “inventar” novas fórmulas, agora); critiquei o STF por ter errado na absolvição de Duda Mendonça, ao mesmo tempo em que demonstrei incongruências relacionadas à aferição do que seja quadrilha ou bando.
Dormindo com o inimigo...
Aliás, por falar em presunções, condenação com ou sem provas, depois do artigo que o governador Tarso Genro (PT) escreveu sobre a AP 470 (clique aqui para ler), os réus do mensalão nem precisam de inimigo para discutir o aludido julgamento...! Vejam o que disse o prócer petista: “Entendo que todo o Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores. Isso é parte de sua engenharia institucional e do processo político que caracteriza as suas funções. Nas decisões das suas Cortes, às vezes predomina o Direito, às vezes predomina a Política”. Como assim, governador? Pode condenar sem provas? E “às vezes predomina o direito”? Só às vezes? Não é sempre? Uma boa mistura de Marx com Kelsen ou Kelsen com Marx?
Pelo texto de Tarso, de um lado, tudo se resolve na política; já, de outro, o que for decidido, decidido está. Bem na linha do que diz o velho Kelsen! Interessante notar como Kelsen é lido como “um crítico” (erro cometido também por marxistas como Oscar Correas). Essa leitura enviesada faz com que muitos marxistas (e outros) leiam o decisionismo como algo “bom”, além de, em termos de Teoria do Direito, ser conveniente dizer que “qualquer resposta é uma resposta”. Afinal, a decisão judicial, para Kelsen, é um ato de vontade (de poder, acrescentaria eu). Como diz Kelsen, juiz faz política jurídica...! Bueno, se isso é bom, aguentem-se as consequências.
Mas, o que o governador petista esqueceu?[1] Ora, sob o pano de fundo de mais de 200 anos de constitucionalismo — que podem ser hermeneuticamente reconstruídos como um processo de aprendizagem social e político de longo prazo — Tarso esqueceu o que é o Estado (Democrático) de Direito. A crise do Estado Social e o esgotamento de uma concepção positivista do direito nos ensinaram, à custa de muito sofrimento, que, se o Estado de Direito tiver “espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores”, ele já não é mais Estado de Direito, é puro autoritarismo. Isso é elementar (a menos que, quem diga isso, não acredite na democracia). Isso porque o direito do Estado Democrático de Direito não é indiferente às razões para se absolver ou se condenar, pela singela razão de que devemos levar os direitos fundamentais a sério.
Uma ordem jurídica que exige a fundamentação das decisões judiciais determina que essas sejam decisões coerentes normativamente com a história institucional e ao mesmo tempo adequadas aos elementos do caso concreto, sob pena de nulidade, assim atualizando, da perspectiva própria do exercício da jurisdição, os princípios de legitimidade democrática subjacentes à Constituição do Estado Democrático de Direito.
Dizer que aos Tribunais Superiores seria permitido “espaços normativos amplos, tanto para condenar sem provas, quanto para absolver com provas”, é não levar, portanto, a sério o papel dos Tribunais num Estado Democrático de Direito, que é o de garantir direitos em face de ameaça ou de lesão. Imagine-se essa frase dita durante a ditadura militar... Como Tarso reagiria a uma frase dessas? Mais não precisa ser dito! De minha parte e de parcela considerável da comunidade jurídica, o Estado Democrático de Direito não é indiferente às razões para se absolver e para se condenar. Mas não é indiferente mesmo!
A lei e a “magnífica” igualdade...
Digo isso tudo para poder escrever sobre esse intrincado e delicado tema: “Pena privativa de liberdade é só para crimes violentos ou réus de crimes do colarinho branco também devem ser presos?” Só isso. E quero discutir isso “por princípio”, sem precisar levar em conta o “caso concreto”.
Lido isso, continuo.
O que Anatole France, poeta e escritor que viveu no século XIX, tem a ver com o mensalão e um recente editorial do jornal Folha de S.Paulo? Tudo... e nada. Anatole France, com sua ácida crítica, cunhou um “aforisma” genial: “A Lei, em sua magnifica “igualdade”, proíbe ao rico e ao pobre dormir debaixo de pontes, assim como mendigar pelas ruas e furtar pão”. A diferença é que, desde logo, sabemos quem não será jamais “pego pelas malhas dessa lei”. Por mais igualdade que exista na lei, alguns não serão apanhados... pela simples razão que a eles não se destina. Há outro dito castellano que ajuda a entender o problema: “Las leyes son como las telarañas: los insectos pequeños quedan atrapados en ellas, los grandes las rompen”.
Pois a Folha de S.Paulo acaba de dar uma prova de que não só Anatole France tinha razão como também Raymundo Faoro, quando dizia que, no Brasil, acima da luta de classes, existem os estamentos. Estes se autoprotegem. Pois o editorial da Folha “Prisão só para quem precisa” (ler aqui) é mais uma das clássicas “antecipações das elites” (curiosamente, uma questão bem weberiana, matriz teórica de Faoro). Com um olho no peixe e outro no gato, a Folha — pretensamente representando o “sentimento liberal terrae brasiliensis” — já vislumbra o futuro de alguns setores metidos na corrupção.
Trata-se do “fator vai que”, isto é, vai-que-o-Brasil-mude-mesmo depois do mensalão e, de fato, os crimes do colarinho branco passem a “dar” cadeia... Isso sendo verdadeiro, nada como ir adiantando o lado de amplos setores do estamento pai-trimonialista que sempre se deu bem em nosso Pindorama.
A clientela do Direito Penal
Historicamente o Direito Penal (mas não só ele! Basta observar o atual Direito Administrativo brasileiro) tem sido instrumento para proteger os interesses das camadas dominantes. Até as pedras sabem disso. Aliás, isso está admitido implicitamente pelo editorial da Folha. O Código Criminal do Império foi elaborado para pegar a “clientela” escrava. O Código de 1890, aprovado já um ano após a Proclamação da República, tinha como “clientes” ex-escravos e correlatos (veja-se o paradoxo daquilo que brado há mais de 20 anos: o Direito Penal é-feito-para (contra)-os-que-não-tem e o Direito Civil é-feito-para-os-que-tem: não é por nada que o Código Civil demorou 26 anos para ser aprovado...!).
Com as alterações econômicas com a queda da República Velha e o processo de substituição de importações, surgiu uma nova clientela e novos “bens jurídicos” para serem protegidos (por exemplo, populações urbanas “aptas” para a delinquência, proteção da propriedade com a duplicação da pena de furto quando praticado por mais pessoas ou com rompimentos de obstáculo, escaladas etc., a questão da criminalização de grupos sociais perigosos etc.).
Pronto: um decreto de Vargas institui o novo Código Penal, esse em vigor até hoje. De lá para cá, embora não tivéssemos feito um novo Código, houve uma série de “políticas criminais elaboradas ad hoc”. Mas sem nunca tocar o cerne do problema. Isto é, continuamos a penalizar mais a propriedade do que a vida. Se alguém quiser “ler” a sociedade, consulte os tipos penais dos diversos Códigos e das Leis esparsas.
Despiciendo dizer que a nova Constituição (1988) exigia, desde logo, uma readequação dos tipos penais. Ou alguém pode levar a sério um Código Penal que apena do mesmo modo furto qualificado de galinhas ou botijões de gás e corrupção ou lavagem de dinheiro? Seria hilário se não fosse tão bizarro. Nem é preciso ir adiante.
Sempre houve, pois, um estado d’arte favorável para repetir a frase do camponês salvadorenho — a frase é creditada a um conto de José Jesus de La Torre Rangel — “la ley es como la serpiente; sólo pica a los descalzos”! Ou o brado do “primeiro cidadão” contra o Senado romano, na peça Coroliano, de Shakespeare: “Eles jamais se importaram conosco. Deixam-nos passar forme, com os armazéns atulhados de grãos; fazem leis sobre usura que apoiam os usurários; anulam diariamente toda lei saudável passada contra os ricos e a cada dia anunciam estatutos mais rígidos para acorrentar e cercear os pobres.” Em 1608, o bardo já sabia dessas coisas!
Os clientes e as masmorras
Mas ao lado desse fenômeno ocorre uma espécie de adaptação darwiniana do establishment estamental. Além do fato de mais de 99,99% dos presos — em todas as épocas — serem patuleus ou rafaneus, o próprio “sistema”, não importando a cor ideológica, nunca pensou seriamente na questão prisional. Mas não pensou mesmo! Com isso, os presídios se transformaram em masmorras medievais (a frase é do ex-presidente do STF, Cezar Peluso). Mas, pergunta-se: O que os governos fizeram? Nada. Apenas foram amontando mais pessoas e produzindo, no final de cada ano, indultos. Estes favores — já houve caso de indulto concedido a crime hediondo, quando o STF teve que intervir — são somados a uma coisa bem brasileira. Como não há vagas em presídios, façamos uma coisa simples: se a pena é de 6 anos, o sujeito cumpre apenas 1 ano. E, bingo! Transformamos as vagas nos presídios em “vagas rotativas”. Veja-se: mesmo com essa adaptação darwiniana, ainda assim passamos de meio milhão de presos. E volta-se ao ponto: De que classe social eles saem?
Hoje, para 300 mil vagas, há 520 mil presos. É muito. É evidente. Um percentual expressivo desses detentos se deve a uma baixa constitucionalidade na aplicação das penas e na colheita das provas. Formamos gerações de “operadores” jurídicos com viés conservador, entendido esse termo no sentido de que o agente (juiz, promotor), confrontando com a violência, sente-se pressionado a dar uma resposta à sociedade. Endurece a mão. E, bingo! Cadeias cheias. Alie-se a isso o baixo preparo dos cursos de Direito e os concursos públicos que se transformaram em gincanas tipo pegadinhas, sem aferição de saber e reflexão. E, pior: nada indica que vá melhorar.
Agora, quando o CNJ edita portaria introduzindo filosofia e outras (trans)disciplinas nos concursos, o sistema cria, darwinianamente, o antídoto: uma porção de livros transformando a filosofia, a hermenêutica e a sociologia em uma vulgata. Na verdade, uma espécie de “terceira divisão jurídica” ou “baixo clero do conhecimento”. E parece que não tem mais volta...
E os do andar de cima?
Como dito, quase 100% dessa gente presa pertence às camadas pobres da sociedade. E os do andar de cima? Não cometem crimes? Claro que sim! Só não são pegos. Historicamente, eles escapam por várias razões. Uma delas é o próprio olhar diferenciado que os agentes políticos do Estado encarregados de administrar a Justiça têm sobre o fenômeno do crime. Sendo bem claro: Se o Direito Penal é de classe, o-olhar-sobre-ele-também-o-é!
Um deles é exatamente esse: Cadeia é para crimes violentos... Como se, historicamente, lá só estivessem aqueles que cometeram crimes ditos violentos. Quanta ingenuidade ou desconhecimento. Agregue-se a isso que os crimes do colarinho branco e congêneres têm sempre penas menores que os demais crimes. Por isso, levando em conta — o que também é uma medida para aliviar a superlotação dos presídios — que a pena de prisão até 4 anos pode ser substituída por penas alterativas, até mesmo tráfico de entorpecente já nem dá “tanta cadeia assim” (falemos sério: Alguém pensa que o establishment admite pena alternativa para traficante “em início de carreira” porque está preocupado com a sua recuperação?). Isso desde 1998, quando foi alterado o artigo 44, I do CP. À época, fui o único a sustentar que, na classificação de crimes não violentos, não era possível colocar o tráfico. Parece que perdi... Sustentei que a violência não é apenas “subjetiva”.[2] É, também, simbólica... Um ato de corrupção ou de fraude contra o erário tem um caráter de transcendência muito maior do que diversos crimes tidos como “violentos stricto sensu”...
Não devemos esquecer outro detalhe. Houve um momento em que o sistema estamental teve outra grande ideia: aproveitando a existência da Lei dos Juizados Criminais, aprovou-se outra lei, pela qual todos os crimes com pena máxima até dois anos eram penalizados com cestas básicas. Assim, mais de 50 tipos penais foram rebaixados. Por exemplo, invasão noturna de domicílio, abuso de autoridade, algumas fraudes e até mesmo uma modalidade de fraude à licitação receberam essa benesse. Todos os gatos viraram pardos. Psicanaliticamente, um desastre. Se eu posso delinquir de 50 maneiras e receber o mesmo castigo, é porque perdi o sentido da diferença... Mas, para que discutir isso? A Lei 10.259 foi recebida com espocar de foguetes pelo minimalismo e também por setores da lei e da ordem. Cada um olhando do seu lado. Como diz Machado de Assis, o melhor lado de olhar a chibata é... o cabo!
O busílis da questão
Sim, onde entra “a postura liberal” da Folha de S.Paulo e o clássico adiantamento dos estamentos travestidos de elites? É o seguinte: historicamente, como mostrei, o Direito Penal é um Direito Penal de classe (quaisquer análises, marxista, não marxista, weberiana, não weberiana etc. mostram isso!). Ou seja, vem servindo mesmo para pegar a patuleia. Sempre foi assim. Tanto é assim que, agora, no mensalão, preteou o olho da gateada,[3] como se diz aqui pelo Rio Grande do Sul. Muita gente se assuntou.
O que há de novo no discurso? Sim, porque qualquer jurista crítico no Brasil tem feito ressalvas ao nosso Direito Penal (até mesmo os que escrevem “livros simplificados”, adeptos do neopentecostalismo jurídico criticam o Direito Penal — é de rir, mas o fazem). Os setores liberais do Direito Penal chegam a assumir, por vezes, atitudes que vão do minimalismo ao abolicionismo. Claro que esse discurso deve ser contextualizado e não deve ser criticado com a ênfase que o outro lado lhe dá, isto é, o discurso da lei e ordem. Nem um, nem outro. Minha tese é que o Direito Penal deve ser o direito minimamente necessário para garantir as promessas da modernidade, o que inclui a segurança do cidadão (p.ex., cada um tem o direito fundamental de não ser assaltado; e, por exemplo, o direito a que os governantes sejam honestos e que as licitações não sejam fraudulentas, que os impostos não sejam sonegados...). Nenhum país civilizado do mundo abriu mão do Direito Penal para combater a criminalidade — seja dos pobres, seja dos não-pobres.
Sendo mais claro, o Direito Penal deve proteger interesses públicos e sociais, o patrimônio público e a probidade, não só pela amplitude do seu impacto na sociedade, mas também porque sabemos que a desassistência aos mais carentes que, diante da anomia do Estado e da patente falta de oportunidades para ascensão social que o discurso capitalista apresenta, tornam-se presas fáceis para a prática de crimes. O mal exemplo vindo de cima (des)educa.
Fazer isso é simplesmente manter uma postura substancialista (não ativista!) e realizar nossa Constituição.
Um neolabelling approach
Pergunto, de novo: O que há de novo? O que há de novo é que, agora, não é mais o Direito Penal que é feito para pobres etc. Com o discurso da Folha e o brado contra a prisão, ou melhor, o brado de “cadeia-só-para-quem-precisa”, tem-se que surgiu um novo conceito sociológico: “As pessoas que precisam ser presas.” Ah, esqueci: Se há o conceito das pessoas que precisam ser presas, há também as pessoas que “não precisam ser presas” jamais, desde que não cometam... crimes violentos. Não esqueçamos como é fantástico o Brasil: recentemente aprovamos uma lei pela qual “o primeiro tráfico recebe um desconto de 2/3 da pena.” Claro, o tráfico, segundo parte da intelligentia brasileira, não se enquadra como crime violento... Será mesmo?
Ora, na medida em que um White Colar Man jamais assaltará um banco ou outra atitude “violenta” contra o patrimônio, tem-se que, desde logo, estas pessoas estão marcadas com uma espécie de neolabelling approach terrae brasiliensis. Sempre estamos a dar lições ao mundo... Antes, o label era a marca da choldra, da ratatulha; agora há o label que “marca” a gente do estamento. São brasileiros diferentes. São aqueles que, desde já, sabem que, desde-que-não-usem-de-violência-física, nunca irão para a prisão. Viva a República dos-que-sabem-que-nunca-irão-para-a-prisão! Vantagem: como cadeia é mesmo só para a patuleia, já aí tem-se um bom motivo para não reformar o sistema prisional. Deixemo-lo assim. Os pobres já estão acostumados mesmo... Que beleza, não?
Resta saber qual é o rol de crimes que se enquadra no conceito “não-é-preciso-prisão-para-isso”... Furto qualificado entra? Hum, hum... Será que as elites admitirão que esse crime se enquadre no conceito da Folha de S.Paulo? Estelionato também se enquadra? Os bancos concordarão com isso?
Bom, fraude à licitação, corrupção ativa e passiva já sabemos que são enquadrados como não-violentos, por mais incrível que isso possa parecer, especialmente em um país que não realizou as promessas da modernidade, como o Brasil. E aquele que quebrar um banco e deixar um monte de velhinhos na miséria? Não, claro que não (ironia!). Ele não usou de violência (apesar de gerar crassa violência!). E evasão de divisas? Está na cara que também é um crime violento (ah, lembrei: basta declarar o que o numerário foi “evadido”, mas retornou bem no dia 31 de dezembro — há uma Circular do BC que beneficia esse setor do estamento). Ora, ora.
Não tenho nenhuma ilusão com o Direito Penal. Ele não resolve problemas. Na verdade, ele é um problema. Entretanto, o que colocar no lugar dele? Pena não regenera. Até os paralelepípedos sabem disso. Pena é castigo, retribuição e prevenção geral. Ponto. Sem ilusões. Mas, fundamentalmente, sem hipocrisia! Se é só para a patuleia, então paremos com a brincadeira. E por fim fica a pergunta: Quem decide quem merece a pena? O drama é puramente ontoexistencial: Quem julga quem classifica em “os que precisam e os que não precisam? Quem merece dizer o que é merecer? Ou, quem pode dizer o que é merecer? E ainda: Quem pode dizer quem pode dizer o que é merecer? Não se trata de mero jogo de palavras!
Um novo-velho olhar!
(Per)sigo. Refazendo o discurso dominante, tem-se esse novo (velho) olhar... O Direito Penal pode até ter feito — e faz — uma opção preferencial pelos pobres. Diriam os setores estamentais, mas, vai que um dia a coisa mude, é melhor termos uma prévia blindagem. Além de o Direito Penal ser assim, a pena de prisão tem que seguir fielmente o desiderato do camponês salvadorenho, aqui parafraseado, agora, com os aportes do editorial da Folha: a la cárcel van sólo los descalzos...!
Na verdade, os argumentos da Folha são idealistas. Não leva em conta um país, digamos assim, “concreto”. E qual é a parte “objetiva” que não está dita pelo editorial da FSP? É a seguinte: Como pode a mais alta corte do país abrir mão da pena prevista pelo crime praticado em lei? No máximo, a corte pode atenuar/agravar as penas, também conforme a lei, a positividade. E esta positividade é democrática. Como diria Heller, se se não tratasse de uma positividade de uma democracia, é razoável exigir a sua não aplicação. Mas não é nosso caso. Não estamos numa revolução, num estado de exceção. Por exemplo, não se pode tirar a razão de Lewandowski quando diz que não se poderia fugir desta “literalidade” ao absolver gente que outros condenaram com base em “presunções” (lembremos, de novo, do inolvidável Malatesta).
Numa palavra: se o STF seguir a conselho da Folha, é a prova de que a imprensa ditou todo o julgamento. Para condenar e para se arrepender. E em benefício do que virá depois.
Ainda: Não pensem aqueles que “torcem” a favor dos réus da AP 470 que os que hoje dão a aparência de que estão a favor — no caso, o editorial da FSP e outros comentários “quetais” — amanhã não dirão outras coisas...
Aliás, no dia em que o STF disse que “o ordinário se presume”, não houve, no dia seguinte, editoriais sobre isso (esta Coluna foi a única a protestar, desmontando o “fator Malatesta”!). Mais. Não foi só a “liberal” FSP que não protestou contra isso... Muitos dos penalistas e processualistas-penais que defendem teses libertárias (no caso, com este texto de hoje, serei considerado “conservador”, “não-libertário”) deixaram passar in albis partes importantíssimas do julgamento do mensalão... (insisto: quem perdeu mais no mensalão foi a dogmática jurídica...)! Pois é. Quedaram-se silentes. Fico pensando na frase: Pena de prisão é-só-para-quem-precisa! Pois não é que a palavra “precisa” é um modo ideológico de dizer “merece”...? Assim, a frase correta (para a FSP e alguns setores do direito penal) seria: “Pena de prisão é só para quem merece”. Não é verdade?
O que quero dizer é que devemos ter muito cuidado com discursos que parecem “liberais”... Numa palavra: entre raposas e ouriços — como diria Dworkin[4] — prefiro o ouriço. Enquanto a raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande coisa (one big thing).
Por fim, para fortalecer ainda mais a ideia da desigualdade deste país e privilégio das camadas estamentais, sempre, eis o trecho (a grafia é a da época, uma vez que esta publicação assim o fez):
“Donde nasce também que nenhum homem nesta terra he republico, nem zella, ou tracta do bem comum, senão cada hum do bem particular. (...) E assim he, que estando as cazas dos ricos (ainda que seja à custa alhea, pois muitos devem, quanto tem) providas de todo o necessário, porque tem escravos, pescadores, e casadores que lhes trazem a carne, o peixe, pipas de vinho, e de Azeite que comprão por junto: nas villas muitas vezes se não acha isto a venda; Pois o que he fontes, pontes, caminhos, e outras couzas publicas he hũa piedade porque atendosse hũns aos outros nenhum as faz, ainda que bebam a agoa suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pellos caminhos, e tudo isto vem de não tractarem do que há cá de ficar, senão do que hão de levar pera o Reyno;
Estas são as razões, porque algũns com muita dizem, que nam permanesse o Brazil, nem vay em crescimento; e a estas se pode ajunctar a que atras tocamos de lhe haverem chamado Estado do Brazil tirando-lhe o de sancta cruz com que poderá ser Estado, e ter Estabilidade, e firmeza.
Frei Vicente do Salvador: Historia do Brazil (edição e introdução de Maria Lêda Oliveira), Versal Editores, SP, 2008, fl. 4v e fl. 5.
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[1] Há uma interessante crítica em Luiz Moreira aponta equívocos em artigo de Tarso Genro.
[2] Sobre o assunto, ver texto do meu orientando Rosivaldo Toscano Jr.: Violência e criminalidade: o essencial é invisível aos olhos.
[3] Quer significa: complicou “geral”; a “coisa está feia”; “pode sobrar para mais gente”.
[4] O ponto de partida do livro Justice for Hedgehogs (Justiça para Ouriços) é uma frase do filósofo grego Arquíloco – “The fox knows many things,but the hedgehog knows one big thing”.