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Desde 1992, a falta de Audiência de Custódia pode anular condenações?

O que me levou a escrever esta coluna foi a notícia da ConJur dando conta de que, além de assegurar mais garantias aos presos em flagrante, o Estado economizaria mais de R$ 4 bilhões com a audiência de custódia (AC).
23/07/2015 Atualizada em 21/07/2023 11:00:43
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Desde 1992, a falta de Audiência de Custódia pode anular condenações?



Lenio Luiz Streck*



O que me levou a escrever esta coluna foi a notícia da ConJur dando conta de que, além de assegurar mais garantias aos presos em flagrante, o Estado economizaria mais de R$ 4 bilhões com a audiência de custódia (AC).

Há posições radicalmente a favor da AC, inclusive o Conselho Nacional de Justiça, assim como existem posições contrárias, como recentemente decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgamento de Habeas Corpus (ler aqui). Existe, entretanto, um conjunto de elementos que ainda não foram esgotados nessa discussão e que, por amor ao debate, trago à colação para que a comunidade jurídica reflita. O leitor decide.

Buscando aprofundar o assunto...

Portanto, não devemos comprar as coisas pelo preço anunciado. Há muitas perguntas sem resposta. Vamos a algumas questões que considero relevantes:

a) Soube que, de fato, o número de prisões cautelares diminuiu em SP, com a implantação das AC’s; mas foi num percentual pequeno, algo em torno de 5%, se isso; será interessante analisar isso no futuro: se diminuírem as prisões, por quê será?

b) A lo largo disso, a audiência de custódia é uma derrota para a polícia brasileira. Mas também é uma derrota do ministério público e da magistratura. Isto porque, com todo o capítulo 5º da Constituição Federal e uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal garantindo direitos, ainda não conseguimos resolver um problema como esse. Mas quem mais perde é a polícia. Parece que, passados 27 anos, as entidades de defesa dos direitos e o judiciário (parte dele) não acreditam na autoridade policial. Ou seja: o sujeito é preso e depois deve ser apresentado ao juiz. Parece que o Judiciário — especialmente ele — desconfia que ele possa ser torturado (vamos, pois, dar o nome certo para as coisas).

c) A CF diz “comunicar imediatamente”. Como isso vem demorando mais de 24 horas (os “tempos” são vários), pegamos — atrasadamente — a Convenção (de 1992) e acreditamos que o “sem demora” é mais do que “imediatamente” (claro, tem o acréscimo do “apresentar”). No mais e no limite, poderíamos até discutir o que significa “sem demora” (imediatamente; após a formalização do flagrante; 24 horas etc.).

d) Não pensamos nem um pouco em treinar a policia, dar-lhe melhores salários, entre outras coisas, exigir uma fundamentação adequada nas prisões por parte dos juízes (falarei disso mais adiante) e uma accountability maior do ministério público nas suas manifestações. Sim, temos péssimas prisões, ao ponto de o Ministro da Justiça dizer que, fosse preso, se mataria. Mas possuímos um adequado sistema de garantias que, se não está funcionando, não quer dizer que precisamos alterar uma estrutura sem mudar o CPP (falarei disso na sequência). Ele ainda não funciona bem para os pobres em face do imaginário que construímos, no qual os que contratam bons advogados historicamente são tratados “com muito mais garantias”, se me entendem o que quero dizer. Mas para isso não é necessário atirar fora a água com a criança junto...

e) Mas existe, ainda, outro grande problema, de ordem constitucional-formal e, como constitucionalista e coerentista, não poderia deixar passar in albis: a AC cria regra processual por iniciativa administrativa do poder judiciário, nem mesmo por atividade jurisdicional. Pode-se dizer: "mas isso é controle de convencionalidade". Sim, mas não ao ponto de se substituir, via ato administrativo, ao legislador. Alguém poderá dizer: mas a lei já existe, que é a própria Convenção. Sim, sabemos que a Convenção tem valor supralegal. Então, das duas uma ou as duas juntas: estamos na ilegalidade desde 1992 ou deveríamos ter adaptado a alteração do Código de Processo Penal à Convenção. A terceira hipótese é o da não validade desse dispositivo da Convenção (trato disso na sequencia, face à tese da rigidez constitucional). Não fizemos nenhuma das duas coisas e tampouco tratamos da terceira. E, agora, sem adaptação legislativa, o judiciário “regulamenta a matéria”. 

f) Permito-me dizer: meu argumento no item anterior quer significar apenas que nada disso dispensa — antes, recomenda — a edição de uma lei disciplinando essa complexa matéria. Isto para evitar que o Judiciário (leia-se, seus órgãos e o CNJ) possa criar, ao seu tempo, modo e entendimento, a “sua” AC. Minha tese:  que isso venha minimamente delimitado em suas rotinas. O problema não é, pois, a disciplina propriamente dita do CNJ; talvez seja, isso sim, a percepção de certa parcela da comunidade judiciária de que, “agora sim” — ou seja, somente a partir da regulamentação do CNJ — é que a coisa é “para valer”. Seria um problema de um dever de fundamentação tardiamente percebido?

g) Esse poder normativo criativo da administração do judiciário está sendo relativamente bem recebido neste caso porque a causa é progressista, tem objetivo de prender menos gente, esvaziar cadeias, economizar dinheiro etc. Isso sempre cai bem aos ouvidos. Mas esse é o ônus da coerência. E aqui assumo esse ônus, para perguntar: e quando a causa não for tão "positiva" ou “progressista” assim, estaremos dispostos a aceitar que administradores do Judiciário ditem regras de processo a pretexto de controle de convencionalidade?

h) Mais uma coisa. Se for verdade que a AC é apenas uma garantia a mais, sem criar embaraços outros ao réu e sua defesa, até vá lá. Poderíamos pensar que "uma garantia nunca é demais, melhor tê-la do que não tê-la." Ou seja: a CF exige a comunicação imediata e a Convenção (que não tem o mesmo valor de norma constitucional) diz que é necessário apresentar o preso ao juiz.

i) Entretanto, vejam o imbróglio disso. Explico: Uma das conquistas da Lei 11.719/2008 foi o interrogatório do réu ao final. Isso é uma garantia, e está na lei brasileira (e nisso a Convenção ou o Tribunal da Costa Rica não pensou... E por quê? Porque ali sempre se tratou de outras realidades que não as do Brasil). A AC antecipa a inquirição judicial do suspeito não apenas para antes da instrução, mas para antes da própria formalização da acusação. Muitas vezes o preso prestará depoimento em situação fragilizada, recém-chegado do fato, ainda perturbado pela prisão, talvez ainda sob efeito de álcool ou drogas, ou da abstinência imediata dessas substâncias. Dialetizando: sim, sei que cabe ao Defensor orientar o flagrado a exercer o direito ao silêncio; ou, quando menos, protestar ao Juízo para que não faça perguntas que o possam incriminá-lo, justamente por conta dessa situação. De todo modo, é uma preocupação que se coloca.

j) Alguns preconizam que esse depoimento não seja valorado como prova, ou que o juiz que o colheu fique impedido de julgar (problema: em uma análise econômica — que não é minha, é claro — isso gerará mais despesas...). Ok, mas como e por que, no sistema que temos? Seria incompreensível a não valoração. Vejamos: Primeiro, se nem o juiz que tomou contato com a prova ilícita fica impedido (por força do veto ao parágrafo 4º do artigo 157 do CPP), não é possível que se crie administrativamente um impedimento para o juiz que fez essa audiência, que, no mínimo, nada teria de ilegal. Senão, imaginem o paradoxo: o juiz que teve contato com uma confissão obtida mediante tortura vai poder julgar o processo, mas o juiz que ouviu o réu em audiência, na presença de defensor, fica impedido. Segundo, não há fundamento para declarar essa prova inadmissível. Se entendermos que o ato é realizado por imposição convencional (ou seja, com fundamento jurídico), a prova não tem nenhum vício processual. Qualquer provimento administrativo que diga o contrário é inconstitucional na medida em que, quando menos, interfere em questão jurisdicional, de interpretação da lei processual.

k) Outra questão que não está sendo abordada e que esconde uma porção de outras: se os juízes começarem a soltar os flagrados agora, é porque já prendiam mal antes, não é isso? Sim, porque, a rigor, não muda nada, na fundamentação da prisão ou soltura, a partir da passagem pela AC. Elementar isso. Fora a constatação visual da eventual violência policial (que poderia ser feita de outro modo, filmando depoimentos nas DPs, por exemplo), o resto fica na esfera do psicologismo ou da má filosofia (essa história de que "o contato direto do juiz com o preso humaniza a relação etc." é uma coisa pré-constitucional, não resistindo a alguns minutos de uma boa filosofia constitucional).

l) Quero dizer: o dever de fundamentar corretamente as prisões existe independentemente da AC; se o objetivo é "soltar mais" — e quem disse que isso é bom (ou ruim)? —, que se cobre melhor fundamentação das prisões. Ou que se invista, de fato, nas medidas cautelares alternativas, como o monitoramento eletrônico (cujo sistema é falho e que, pior do que isso, vem sendo utilizado como substitutivo de prisões — definitivas! — em regime semiaberto e aberto, como sabem todos).

m) Aliás, outra boa discussão a ser feita é essa: reconhecida a necessidade de implantação da AC, como se dará a modulação dos efeitos dessa providência? Soltemos todo mundo? Apresentemos todos os presos imediatamente aos respectivos Juizados, para “esquentarmos” as prisões? Consideremos o passado como “mera irregularidade”?

n) É claro que não é assim, a machadadas, que se trata desse tipo de coisa. Ou seja: se a Convenção vale — como norma supralegal - em Pindorama desde 1992 e só agora será cumprida, não seria bom fazer uma lei regulamentando a AC, inclusive com modulação de efeitos, para evitar uma enxurrada de ações exigindo anulação de todas as ações penais em que a Convenção não foi cumprida? Ou indenizações? Não esqueçamos que os EUA pensavam que uma nulidade decorrente de inconstitucionalidade  tinha efeito ex tunc, até que veio a primeira anulação de uma lei... penal. Aí se deram conta de que, nestes casos, tinham que dar efeito ex nunc. As razões eram óbvias. Por aqui o CNJ pensou nisso? Já que estão pensando em análise econômica, indenizações poderiam/poderão ser um tiro no pé da Viúva.

o) Resumindo: se estamos de acordo que a ordem decorrente da Convenção (condução da pessoa detida ao juiz) é válida e vigente, ela está sendo cumprida tardiamente e o próprio CPP já deveria ter sido adaptado, pois não? Concorde-se ou não com ela, não se pode dar nenhuma outra interpretação ao texto que não esse: temos de levar o preso à presença do juiz. De que modo e por quais razões? E quais os presos? Todos. Inclusive os de preventiva e pensão alimentícia. Qualquer prisão, correto?

p) Por isso, devemos tentar ler isso sob a sua melhor luz. Se for para considerar a AC uma garantia, deve-se dar a ela um tratamento harmônico com as demais garantias consagradas às pessoas sob esta condição (presas). Não se pode, por exemplo, reduzir a coisa ao ponto de simplesmente levar o sujeito à presença do juiz, sem que possa dizer nada ou sem que o juiz deva perguntar coisas a ele. Mas também, concordo, pode-se dizer que a disciplina do CNJ a partir daí foi "além das suas sandálias", que misturou alhos com bugalhos e que, a pretexto de dar consequência a uma garantia, acabou invadindo competência legislativa, ao dar nova rotina às prisões em flagrante, criando uma espécie de "etapa" para a sua conversão em preventiva. E, neste caso, dando até mesmo um tratamento desarmônico nessa coisa de subverter a "garantia de ser ouvido ao final" (pelo visto, se o legislador tivesse adaptado o CPP à Convenção, esse dispositivo não teria sido aprovado...).

q) De qualquer maneira, uma coisa é certa: valendo a Convenção, deve-se, sem demora, "conduzir a pessoa à presença do juiz". Mas, será que, no contexto brasileiro (não no equatoriano que deu origem aos julgados da Corte Interamericana), essas exigências já não vinham supridas pelo CPP? Mais: se a Convenção não tem status de norma constitucional, poderia ela dizer mais do que a Constituição, contrariando, assim, certa doutrina de rigidez constitucional que vem desde o caso Marbury v. Madison? Não estar-se-á (ia) transformando a Constituição de rígida em flexível? Isto é, a Convenção, ao colocar a exigência de “apresentação do preso”, não alterou a própria Constituição brasileira, que agora passará a ser lida em conformidade a uma norma supralegal? São perguntas que deveríamos tentar responder. Mas se a resposta for negativa, isto é, a Convenção trouxe uma garantia a mais e isso apenas reforça o sistema de garantias previsto no capítulo dos direitos e garantias do cidadão na CF, não tem jeito: algum "rendimento" há de se tirar desse texto da Convenção.

r) De todo modo, insisto, trata-se de uma questão que deve(ria) ser debatida no plano da legislação e de uma alteração do CPP, adaptando o direito processual penal à norma da Convenção (uma vez respondida a questão dos limites desta em relação a Constituição). Cabe à legislação fazer isso. Com granu salis.

s)  Tenho sido bastante rígido na exigência da reserva de lei e da reserva constitucional. Embora a AC seja uma medida bem-vinda em face da realidade de descumprimentos da própria Constituição — uma vez que a “comunicação imediata” já de há muito deveria ter resolvido o imbróglio — isso não quer dizer que o judiciário, mormente por via administrativa, possa vir a fazer a regulamentação, mesmo que para “acatar” um dispositivo de uma Convenção. Quem deve fazer essa adaptação é o parlamento, com sanção ou veto do poder executivo.

t)  E isso também não significa que, uma vez estabelecida a AC, a apresentação do flagrado supra a necessidade de fundamentação detalhada. Como disse antes, pensar que a apresentação pessoal resolve um problema é dar mostras de fracasso institucional e, ao mesmo tempo, regredir à pré-constitucionalidade.

u) Sim, dou apoio a AC, não sem antes ver respondidas as indagações acima e resolvidos os gaps constitucionais e se vamos modular ou não. Muitos advogados pensarão em interessantes ações contra a União...

Numa palavra: não é porque a causa é simpática que devemos nos render ao protagonismo judicial, deixando de lado alguns requisitos institucionais e constitucionais. Ao mesmo tempo em que reclamamos quando o judiciário aplica uma pena de 15 anos e, ao mesmo tempo, concede prisão domiciliar (esses critérios advém do amplo e indevido poder discricionário do qual, erroneamente, a dogmática não reclama), temos que nos dar conta de que temos de respeitar as regras do jogo... sempre. E não abrir mão delas, mesmo nas ocasiões em que isso nos soe confortável e virtuoso.



*Lenio Luiz Streck, procurador de Justiça do MPRS
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